
É difícil discorrer sobre a obra de um amigo. O olhar crítico não pode ser amigo, precisa ser rigoroso e distante das influências do afeto. No caso do autor Edmilson Borret, ser crítico com a sua produção talvez não seja um empenho forçado para mim. Nossa amizade é quase que exclusivamente ligada pela ponte da literatura, pela troca de impressões textuais, pela visão crítica sobre o outro. Nossas conversas pessoais são breves, sempre abreviadas pelas necessidades administrativas da vida. Que fique claro, isso não desqualifica a estima, apenas confere mais destaque ao núcleo da relação. É uma amizade técnica. No que me diz respeito, um misantropo assumido, é o ideal de amizade. Tudo isso facilita a vontade de isenção dos comentários que farei agora sobre o livro “Terapêutica para dias de afeições insolúveis”.
Fui pegar pessoalmente o livro do Borret debaixo de um desses inesperados aguaceiros cariocas. Atravessei as ameaçadoras poças d’águas que brotam nas calçadas feitas para o tropeço, me desviei das cachoeiras caudalosas provocadas pelos toldos dos sobrados do Centro da Cidade e alcancei sem sinais de afogamento o ponto de encontro. Foi um esforço que fiz imbuído da crença inabalável de que o livro valeria qualquer desafio. Cumprimentei um Borret sereno, munido do seu infatigável cigarrinho (incenso de escritor) e sentamos à mesa de um bar do Edifício Central para um papo leve sobre editoras, literatura e outras amenidades.
Sou admirador incondicional do trabalho de Edmilson Borret, acompanho o seu capricho na composição dos textos, seu cuidado de revisão. O seu compromisso com a qualidade é um imperativo da sua formação como autor. Um imperativo que faz contraponto com o meu toque canhestro e avoado, talvez por isso me inspire como gerador de literatura. “Terapêutica para dias de afeições insolúveis” não é somente um título intrigante, é uma criação que traz a intensidade do que chamo de universo borretiano.
— É um livro de poesias? — Perguntaria o leitor que anseia por ir direto ao assunto.
É mais do que isso — afirmo. São poesias que dialogam com o leitor, o que é uma grande virtude destinada somente aos melhores poetas. Há nesta obra de Borret aquilo que Nietzsche intitulou como “humano, demasiado humano”. É a humanidade, em todas as suas facetas, que transborda das páginas, respinga em nosso rosto e não se inibe quando define nossas múltiplas naturezas.
“O homem livre só esgota tudo esgotando-se.”
A filosofia trespassa a poética de “Terapêutica” como um elemento que ancora os versos, a palavra, a ideia. Não são folhas despencando ao sabor do vento, são folhas presas a uma árvore sólida, com função definida, desenhando os galhos e o tronco de uma composição segura e sólida.
“A primeira vez em que
Me chamaram de poeta,
Estarreci (…)
Em coro crescente toda a Terra ouvia:
Poeta, poeta, poeta!
E os cães da vizinhança começavam a ladrar.”
Edmilson não foge do humor refinado e suave que quebra a ideia dramática do poema. Versos que nos surpreendem quando nos causam um sorriso. É a poesia como elemento de sedução.
Há na filosofia presente e orgulhosa dos versos de Borret um sentimento que evita os extremos, que não se lança ao abismo. Equilibra-se na observação atenta dos que caminham pelos riscos de um desfiladeiro.
“Divergir às vezes
é costurar às avessas
o cós e a bainha
de um mesmo sentimento (…)
Talvez por isso
Os mais antigos
ensinavam a alinhavar.”
Versos que também perpassam pelo diálogo sutil com o tempo, com os desgostos cotidianos que catalisam a esperança, o “amanhecimento”. Palavra linda que brota em um de seus poemas.
“Fica a lição
de galos
e do tempo:
amanhecimento.”
Esbarramos com o cada vez mais atual desprezo do homem pelo homem, a tal falta de empatia que virou moda. A apatia de quem não enxerga os sobreviventes, somente o mérito dos viventes. Alguns versos soam como aforismos preciosos se isolados do poema, mas ganham muito mais valor enraizados ao tronco da obra implacável do autor:
“Antes a solidão que a ilusão (…)
(…) A poesia é um michê
sentado num banco da Cinelândia”
“O bafejo quente da noite
de primavera descontente de não ser verão.”
Um poeta não é poeta se não conversa também com a morte. Borret faz isso com maestria, sem choro nem vela. Dialoga com a própria morte pelo ângulo de quem enxerga a banalidade de si mesmo.
“Se eu me matasse hoje
Circunlóquios de nada valeriam
Teria que ser dito sem titubeio
ou afetação: matou-se!
Obituário econômico:
“53 anos, tendências poéticas. Não deixa esposa ou filhos. Sepultamento hoje.”
Há em todo livro, de forma explícita ou implicitamente, o gesto de quem tateia por uma identidade, que faz da poesia um mapa que guia e confunde. No poema “Espera”, o autor se impõe:
“(…) pois se eu ousasse dizer quem é você
eu limitaria as possibilidades de você
Talvez eu seja você.”
Borret utiliza sem pudor as ferramentas que herdou na sua formação em Letras. A sua paixão visceral pela palavra, o seu domínio da língua, o amor pela construção de mundo que ela representa. Borret nos ensina com sua literatura que a palavra é a fundação de tudo. Leio Edmilson desde seu primeiro livro publicado. Testemunho a sua evolução, sua busca pela originalidade que não comprometa o universo que precisa expressar. É um escritor apaixonado pelo ofício, um escritor legítimo e indicado para a leitura de escritores e apreciadores da boa escrita. Fica aqui a minha dica. Com um derradeiro e definitivo verso de Borret encerro esta análise.
“O tempo passava por entre
suas pernas — como as palavras
O homem as nasceu todas!!”
- Terapêutica para dias de afeições insolúveis
- Editora Penalux / SP
- 2020